terça-feira, 21 de agosto de 2012

"UM PORTO SEGURO" por MESA MARCADA

"Conheço poucos restaurantes como este Paparico que associe uma cozinha simples, rústica com um toque contemporâneo e um serviço profissional, personalizado e actual. Ainda para mais num ambiente aconchegante, requintado, sem grandes formalismos.

O restaurante fica na Areosa, a duas centenas de metros da Igreja das Antas e da Avenida Fernão Magalhães. Funciona num edifício de piso único, um antigo estábulo com mais de 100 anos. Já existe há vários anos com esta designação mas está nas mãos  de um jovem de 26 anos, Sérgio Cambas, há cerca de 3 anos Cambas nasceu entre hortas e restaurantes da família, na Póvoa do Varzim. Como tantos outros jovens podia ter ficado por ali mas a sede de conhecimento fê-lo prosseguir os estudos (em hotelaria) e sair do país para ganhar mundo. Lá fora trabalhou numa importante cadeia hoteleira, o que o levou a Barcelona e Londres e embora tivesse vontade de continuar resolveu regressar para arriscar num negócio próprio. Os antigos donos do Paparico queriam trespassar o restaurante. Ele soube e tomou-o. Fez obras, aumentou o espaço (tem hoje 40 lugares distribuídos por várias salas), modificou o serviço, a carta de vinhos e evoluiu a cozinha sem a descaracterizar, mantendo a primazia dos grelhados – vertente em que a casa tinha alguma fama.

O jantar foi marcado para um dia semana do final de Maio e as coisas não começaram especialmente bem. Primeiro, não respondiam ao toque da campainha (o restaurante funciona à porta fechada), pelo que foi necessário telefonar a pedir para abrirem a porta. Depois, embora tenham pedido desculpa, deixaram-me plantado à espera uns dez minutos sem aparente justificação, dado que apenas meia casa estava preenchida. Só quando revelei alguma impaciência é que um dos empregados apareceu para me dizer que iam preparar a mesa. Neste período aproveitei para observar a sala de espera e o bar, bem recheado de destilados escoceses de ourivesaria. Nas mesas e em estantes vários números de revistas de vinhos, alguns dos principais livros de cozinha actual (Noma, El Bulli, Momofoku, Fat Duck) e um que me chamou particularmente à atenção, o Larrousse Gastronomique, a bíblia da gastronomia. O cenário prometia, faltava saber se era fogo de vista ou se o conteúdo iria estar à altura.

Já na mesa o chefe de sala (Sérgio Cambas, o proprietário) faz as apresentações da casa: “gostamos que os clientes se sintam como se tivessem em casa de família”, refere-me e adianta que costuma incentivar a partilha quer das entradas, quer dos pratos principais. Como estou sozinho e para que possa provar vários pratos propõe-me uma espécie de menu à minha escolha, em doses reduzidas.
salada de bacalhau e crocante de broa de avintes
terrina de vitela arouquesa com vinho do porto

Aceito as duas das entradas que entretanto tinham trazido e recuso a terceira, queijo de Azeitão com um fio de azeite. A primeira é uma salada de bacalhau com um crocante de broa de Avintes. O fiel amigo vinha em pequenos troços e cru (ou quanto muito ligeiramente escaldado). Estava bem demolhado, temperado a preceito e revelava qualidade -  sem deixar aqueles irritantes farripos nos dentes. De salientar ainda a ideia feliz do crocante de broa de Avintes, que dá personalidade ao prato e quebra a monotonia no sabor e na textura. Depois foi a vez da terrina de vitela arouquesa com vinho do porto. Confecção a preceito, com a terrina à base de fígado, cremosa, envolvida numa capa de gelatina com um toque adocicado assente numa redução de porto. Ao lado pão torrado na grelha. Uma pura gulodice. Realço ainda a apresentação simples e cuidada tendo como suporte pedras de mármore. Na carta de entradas figuram ainda outras nove opções entre quentes e frias, maioritariamente de cariz tradicional, com uma ou outra proposta mais fora do baralho como é o caso de uma vieira grelhada com manteiga de coral e vinagreta de chouriço.

Nos principais apenas três propostas “do mar” e quatro “da terra”. No primeiro grupo – que incluía nesse dia, também, um lombo de robalo pescado à linha -   fazia parte um arroz malandrinho de bacalhau e tomate, um bacalhau grelhado na brasa e um polvo da costa grelhado com batatas a murro cebolinhas, tomate cereja em vinho do porto. Optei por este último e dei-me bem. O polvo vinha  na consistência ideal - nem demasiado mole, nem demasiado rijo - e as batatas assadas estavam de acordo com as regras. As cebolinhas – que na verdade eram chalotas – e o tomate cereja em vinho do porto foram o detalhe que fez a diferença. O seu sabor agridoce deu um toque especial ao conjunto.
No capítulo das carnes predominam a grelha e carne arouquesa, tão famosa por cá, quanto rara. A única alternativa à dama dos pastos de Arouca é o prato de “Costelinhas” de porco preto de Barrancos.

Devia ter pedido o que uma boa parte dos clientes pede, a posta grelhada na brasa. Contudo queria saber como se cozinha ao fogão por ali e optei pelo único prato que julgava não passar pela grelha, a vitela com molho de míscaros e vinho do porto, batata nova e arroz selvagem. Primeira constatação: a carne é fabulosa e o trato que lhe dão também conta e muito. Pelo que fui informado todas as carnes passam primeiro por uma cozedura a vácuo e depois pela grelha. Portanto a textura sedosa não é apenas um predicado que advém da raça do animal mas, também, da forma como é confeccionado.

Pena que, depois, quase tudo tenha sido um erro de casting: do desequilibrado molho de natas que misturado com os míscaros tornava tudo pesado, à mistura de arrozes basmati(?) e selvagem, cujo sabor tipo ‘uncle ben’s’ em nada favoreceu o delicado paladar da carne. Salvaram o prato, como acompanhamento, umas óptimas batatas fritas em rodelas.

No campo das sobremesas há vários queijos, gelados (presume-se que feitos na casa) e meia dúzia de outras propostas donde saíram um bom leite creme feito e queimado no momento e um toucinho-do-céu em quantidade certa e bem adjuvado por um gelado de limão que transmitiu frescura ao conjunto.

Outro ponto forte do Paparico é o serviço de vinhos. A oferta é exemplar – para um restaurante desta dimensão - o aconselhamento, a qualidade dos copos, e as temperaturas, idem. A carta é rigorosa e está bem organizada (por regiões, produtor/enólogo, grau alcoólico, castas e ordem crescente de preço). Reúne quase 400 vinhos de praticamente todas as regiões do país, com predominância para o Douro, como seria de esperar, mas sem que esta região seja completamente dominadora. Cerca de 45% dos vinhos da carta são tintos, 22% brancos e outros 22% generosos (com destaque natural para os portos). Dos restantes 11%, metade são espumantes (incluindo champanhes) e a outra metade divide-se entre roses e colheitas tardias. A refeição foi acompanhada a copo com o espumante do Douro, Vértice Super Reserva Millesime bruto 2005; o branco da Bairrada, Nossa 2010, de Filipa Pato, o duriense tinto, Vinha do Fojo 2001 e o porto Krohn colheita 1983.

A selecção dos vinhos deste jantar ficou a cargo do dono da casa, Sérgio Cambas, que se mostrou um verdadeiro homem dos sete ofícios: é mestre hospitaleiro, dá (mais do que) uns toques na cozinha e, pelo que mostrou, é um bom seleccionador de vinhos. Como se não bastasse domina várias línguas (o que dá jeito para estar bem classificado no tripadvisor, dado que os estrangeiros são uma boa parte dos clientes da casa) e está bem adjuvado por um conjunto de empregados eficientes – excepto, por vezes, quando é necessário abrir a porta.

O Paparico é uma espécie de mini versão lusa de um assador da vizinha Espanha. Sérgio Cambas tem vontade de ir mais longe mas quer fazê-lo com calma. Talvez necessite de mais experiencia para criar pratos (ou de ter alguém com essa vertente mais apurada). Isto se quiser ir mesmo por esse caminho, claro. Eu apreciei o espaço, a hospitalidade, a qualidade dos produtos que utilizam e a simplicidade com um toque requintado na confecção e na apresentação. Há certamente correcções a fazer mas no computo geral o Papario é um restaurante muito recomendável.


Cozinha: 16.5 ; Sala: 17.5; vinhos: 18"

in Mesa Marcada